Segunda, 01 de Outubro de 2012, 03h05
ALMIR PAZZIANOTTO PINTO - ESTADÃO
"Se o povo é analfabeto, só os ignorantes estarão em termos de o governar"
Ruy Barbosa
A
essência do regime democrático reside no voto. É pelo sufrágio secreto e
direto, de igual valor para todos, que se concretiza a soberania
popular, expressão consagrada no artigo 14 da Constituição. Em situações
extremas, quando grave crise põe em xeque as instituições, fazendo-as
perder credibilidade, o direito de eleger governantes acaba sucumbindo à
revolução popular ou é abatido por golpe de Estado. No Brasil tivemos a
Revolução de 30, que desaguou na ditadura de Getúlio Vargas, e o golpe
de 64, desfechado pelas Forças Armadas.
O regime implantado em
1964 estrangulou o Estado democrático. Em janeiro de 1985, depois de 21
anos de ditadura, o candidato do governo, Paulo Maluf, foi derrotado no
Colégio Eleitoral por Tancredo Neves, do PMDB, que tinha José Sarney
como vice. Em 1990 o povo voltou às urnas e deu a vitória a Fernando
Collor de Mello. Seguiram-se na Presidência da República, pelo voto
direto, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff. Para as novas gerações, democracia é conquista recente, em
processo de aprendizagem, circunstância que faz o País pagar caro pelo
noviciado.
A Constituição de 1988 restaurou as liberdades
democráticas. Não nos ensinou, porém, como exercê-las, livres da
corrupção e do carreirismo. Bastam o mensalão e o horário eleitoral para
ver o estágio em que nos encontramos. Em vez de mensagens consistentes,
objetivas, que transpirem sinceridade, o que se assiste é a uma espécie
de circo mambembe, com momentos de Escolinha do Professor Raimundo.
Demagogos tentam nos convencer de que são infalíveis e aptos a operar
milagres. A exigência da ficha limpa trouxe enorme progresso. Não
bastará, entretanto, para impedir a presença de elevado número de
despreparados, iletrados e corruptos, que usam de todos os recursos para
se elegerem prefeito e vereador. É a proliferação bacteriana de tipos
como Zé do gás, Chico ambulante, Mulher Pera, Denise massagista,
sargento Júlio, pastor Tobias, dr. Aristóbulo, Helena da lotérica,
Zuleica cartomante, à procura de bom emprego e mordomias.
A
responsabilidade pela mediocridade dominante cabe a poderosos dirigentes
partidários, cujo objetivo é a vitória, pouco importando o preço a
pagar. Legendas são negociadas de conformidade com a lei da oferta e da
procura. O malabarismo eleitoreiro é patético. Favores são trocados
entre velhos inimigos, como se viu quando Lula e Fernando Haddad
desembarcaram no jardim da mansão de Maluf para lhe renderem vassalagem
em troca de segundos na televisão. A fotografia estampada nos jornais me
fez recordar, decepcionado, o altivo sindicalista que lutou contra a
ditadura e fez do combate à corrupção bandeira de luta. Aliados em São
Paulo e no Paraná podem ser adversários em Minas, Mato Grosso,
Pernambuco, segundo as conveniências locais. Sindicatos e igrejas não
ficaram à margem do processo, sendo explorados como currais eleitorais.
Minúsculas
legendas, que agrupam meia dúzia de frustrados, insistem em marcar
presença, sem chances de eleger um só prefeito ou vereador. Servem-se do
dinheiro público para formular, pelo rádio e pela TV, soluções
desvairadas, divorciadas da frieza orçamentária. Pretendem transformar o
Brasil em vasto acampamento de servidores públicos, mantidos pelo
Tesouro. Inspiram-se no falido modelo cubano e na ditadura venezuelana, e
ignoram o elevado grau de rejeição entre o eleitorado.
O povo,
tal como anotou Aristides Lobo no episódio da Proclamação da República,
assiste a tudo bestializado, atônito, surpreso. A Constituição, no afã
de ser exemplo de democracia, escancarou as portas a todos os estilos de
abusos. Além de sujeito a horário político, o brasileiro é obrigado a
votar. E à míngua de candidatos que o convençam, tenta encontrar alguém
que represente menor perigo, anula o voto, vota em branco ou vai gozar o
"feriado" e justificar a ausência.
Em São Paulo o quadro é
preocupante. Na impossibilidade de formar juízo seguro, o paulistano
talvez eleja quem mais abusou da demagogia. Muitos votarão por palpite e
obrigação legal, mas sem convicção. Quanto à Câmara Municipal, o
cenário é desértico. Nada indica que tenhamos avançado no terreno da
qualidade. A carência de nomes e a multiplicação de pretendentes
conhecidos pelo apelido, sem currículo, surgidos do nada indicam que
continuaremos na mesma, sem Legislativo independente e sem o órgão cujo
dever seria colaborar com o Executivo nas boas iniciativas, mas disposto
a mantê-lo sob rígida fiscalização.
Eleições municipais são a
antevéspera de 2014. É por meio delas que os partidos procuram lançar
bases locais de apoio para disputas futuras. Em troca de favores agora
recebidos, prefeitos e vereadores serão porta-vozes de candidatos a
deputado estadual e federal, senador, governador, presidente,
independentemente do mérito e de acordo com a bolsa de cada um. Aqui
reside o perigo. Foi a partir dos municípios que o PT, em poucos anos,
chegou à Presidência da República, de onde não pretende sair.
Se
quisermos erradicar a corrupção e impedir a presença de tiriricas na
vida pública, devemos começar já com criterioso uso do voto. Se assim
não for, dentro de dois anos se repetirá o espetáculo circense, com
resultados previsíveis.
Vem-me à lembrança velho morador de
Capivari, no interior paulista, a quem cidadão proeminente se queixava
da caótica situação política da cidade e do País. Com a experiência
acumulada em muitos anos de vida, respondeu o homem do povo: "Não se
aborreça, vai ficar pior..."
* ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO, PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO