20/10/2012
- FOLHA DE SP - DRAUZIO VARELLA
Duzentos anos de medicina
"The New England Journal of Medicine", a revista de maior circulação entre os médicos, completa 200 anos.
Publicado em 1812, o primeiro número trazia um artigo de John Warren
(1753-1815), um dos fundadores da Harvard Medical School. Nele, o médico
descrevia os sintomas e o tratamento de um religioso que se queixava de
dores fortes no peito, aos menores esforços.
Do ponto de vista científico, a descrição dos sintomas de insuficiência
coronariana é impecável, mas o tratamento realizado é de assustar. O
paciente, um "clérigo pletórico", foi tratado com estimulantes, sangria e
aplicações locais de éter. Em seguida, "recebeu novas sessões de
sangria, ópio, laxativos poderosos e agentes cáusticos aplicados sobre a
pele do esterno".
Como os sintomas persistiram, Warren tentou uma resina de asafétida
--planta caracterizada pelo odor pútrido-- e aplicou nitrato de prata
nos braços e nas coxas, com a intenção de abrir fissuras na pele para
drenar os maus fluidos.
Embora sejam consideradas absurdas, é preciso entender que essas
práticas pareciam sensatas numa época em que os médicos e a população
acreditavam que os estados de saúde e doença dependiam do equilíbrio
entre o fluxo dos quatro humores corpóreos: sangue, fleuma, bile negra e
bile amarela.
Para eles, um bom remédio deveria provocar sintomas suficientemente
intensos para restaurar a harmonia entre os humores. Por exemplo, alguém
convencido de que suas agruras resultavam do mau funcionamento dos
intestinos, sentiria alívio ao receber vomitórios e laxantes. Eram os
tempos da "medicina heroica", segundo a qual quanto mais grave a
enfermidade, mais agressivo o tratamento.
Em 1812, o "The New England" recomendava "sangria copiosa" nos casos de
ferimento por arma de fogo, estratégia bizarra, mas que conseguia
diminuir os sinais de inflamação e a temperatura corpórea, dando a
impressão de que não ocorreriam complicações supurativas ou gangrena. O
mesmo procedimento era indicado para abaixar a febre da malária.
Ainda na primeira metade do século 19, o francês Pierre Louis
(1787-1872) criou o "método numérico", ao comparar dois grupos de
pacientes com pneumonia tratados com ou sem sangria, sem encontrar
diferença na evolução entre eles.
A partir daí, a filosofia de ceticismo que tomou conta da prática médica
encontrou em Oliver Holmes (1809-94) sua maior expressão. Em 1860, ele
afirmou: "Se toda a matéria médica, como hoje é empregada, fosse afogada
no fundo do mar, seria muito melhor para a humanidade --e muito pior
para os peixes".
Essa postura niilista, no entanto, jamais se tornou popular, porque
nenhum médico encontra permissão moral para cruzar os braços diante do
sofrimento humano.
Em 1846, a revista publicou o artigo em que William Morton (1819-68)
descrevia a anestesia com éter. A descoberta, no entanto, demorou mais
de cinquenta anos para revolucionar a prática cirúrgica, porque os
cirurgiões precisavam decidir se a analgesia justificava os riscos de
morte por septicemia.
Apenas no início do século 20 surgiram as técnicas de assepsia e os
rituais das equipes nas salas de operação, responsáveis pela redução das
complicações infecciosas.
Em 1912, quando a revista completou cem anos, Paul Ehrlich (1854-1915),
em Berlim, sintetizou um composto dotado de ação contra a sífilis, o
Salvarsan. Foi a primeira prova do conceito de que os medicamentos
deveriam ser específicos para a doença e não para cada doente em
particular.
A descoberta teve impacto limitado, porque a especificidade do Salvarsan
era mais teórica do que empírica. Apesar de beneficiar alguns
pacientes, a droga provocava efeitos colaterais intensos e não agia em
todos os casos de sífilis.
O pioneirismo do Salvarsan também se manifestou ao expor pela primeira
vez as limitações da abordagem reducionista em medicina: a sífilis não
se restringia ao Treponema pallidum, envolvia comportamento sexual,
aspectos morais e discriminação social. Destruir a bactéria era condição
necessária, mas não suficiente para combater a epidemia.
A revolução da farmacoterapia ainda levaria pelo menos trinta anos para
acontecer. Apenas na década de 1950, cerca de 4.500 drogas novas
entraram no comércio, nos Estados Unidos.
O impacto dessas descobertas analisaremos na próxima coluna.
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Drauzio Varella - FOLHA SP - 031112
Os últimos cem anos
A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da medicina na saúde pública
Duzentos anos atrás, as sangrias ainda estavam na moda. Era a época da
medicina heroica, segundo a qual quanto mais grave a doença, mais
agressivo o tratamento.
Na última coluna, falamos da resenha recém-publicada no "The New England
Journal of Medicine", sobre a evolução da terapêutica médica desde que a
revista entrou em circulação, em 1812. Mostramos que, até o começo do
século 20, os tratamentos eram baseados num nebuloso equilíbrio que
deveria existir entre os humores corpóreos (sangue, fleuma, bile amarela
e bile negra) da pessoa enferma, e não no processo que a fazia adoecer.
Na metade do século 19, o ceticismo provocado pelos insucessos dessa
estratégia despertou interesse crescente pelas causas das patologias.
Motivados pelos avanços na fisiopatologia e na bacteriologia, os médicos
começaram a interpretar as doenças como entidades específicas, que
apresentavam causas próprias e manifestações clínicas características.
O novo modelo levou-os a procurar tratamentos ajustados à enfermidade,
sem agredir o paciente. A busca, no entanto, percorreu caminhos
tortuosos que levariam décadas para encontrar o rumo.
Como vimos, a primeira pista viria do laboratório de Paul Ehrlich
(1854-1915), em Berlim. Depois de 605 fracassos, Ehrlich e colaboradores
sintetizaram o Composto 606, ativo contra a sífilis, que se tornou
conhecido como Salvarsan. Era a primeira prova do conceito de que o
tratamento deveria ser específico para cada patologia.
Muitos reagiram contra essa mudança de paradigma. Temiam que o enfoque
na doença afastasse os profissionais do lado mais nobre: a arte de
praticar medicina.
A revolução da terapêutica só tomaria corpo nas décadas de 1940 a 1960,
período em que foram licenciados mais de 4.500 produtos novos:
antibióticos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes, antidepressivos,
hormônios e muitos outros.
Em 1961, um estudo mostrou que para cada dólar gasto com medicamentos,
70 centavos iam para remédios que não existiam dez anos antes.
O entusiasmo despertado pelas descobertas da indústria farmacêutica fez
surgir novas formas de ceticismo. Nas páginas do "New England",
apareceram termos como "selva terapêutica" e "lavagem cerebral"
patrocinada pelo marketing da indústria.
Então, sobreveio a tragédia da talidomida. Prescrita como sedativo e no
combate às náuseas da gravidez, a talidomida provocou defeitos graves na
formação de braços e pernas de bebês pelo mundo todo. Em 1962, um
editorial da revista afirmava: "Somente a vigilância continuada e
intensiva pode prevenir a repetição dessa experiência".
A preocupação com a segurança deu origem às normas rígidas dos estudos
fase 1, 2 e 3 exigidos atualmente para aprovação de novas drogas.
A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da
medicina na saúde pública. Em 1962, Thomas McKewon publicou uma análise
do número de casos de tuberculose na Inglaterra e País de Gales,
mostrando que a incidência havia começado a cair antes mesmo da
descoberta do bacilo de Koch. O declínio estaria associado à melhora da
alimentação e das condições de moradia.
O entendimento de que a descoberta de remédios eficazes é condição
necessária, mas não suficiente, para ter impacto na saúde pública, seria
confirmado não apenas no combate às epidemias de Aids, sífilis,
tuberculose ou malária, mas até no controle de doenças degenerativas
como hipertensão arterial e diabetes.
Dos purgativos, sangrias e vomitórios prescritos para recompor o
equilíbrio dos humores do paciente de 200 anos atrás, a medicina que
chegou ao século 21 evoluiu para utilizar drogas mais seguras,
desenvolvidas para interferir especificamente com os mecanismos
moleculares envolvidos na fisiopatologia.
Como nas demais "revoluções terapêuticas" dos últimos dois séculos,
outra vez o progresso estará longe de ser linear e contínuo. Haverá
fases de entusiasmo alternadas com frustração e ceticismo.
À medida que a atenção médica se volta para as minúcias dos alvos
moleculares, corremos risco de ficar mais expostos à abordagem
reducionista de destruir germes, células malignas, trocar genes e
reparar mecanismos defeituosos, sem levar em conta que a função
primordial de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.
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