segunda-feira, fevereiro 18, 2013


A marca de um papa

Segunda, 18 de Fevereiro de 2013, 02h03
ESTADAO - Carlos Alberto Di Franco * O mundo, atônito, recebeu a notícia da renúncia de Bento XVI. A decisão, inusual nas plataformas de poder, reflete coragem moral e humildade. O papa deixa uma marca de coerência e de extraordinário vigor intelectual. Num mundo algemado pelos grilhões do ceticismo, o pensamento do papa é uma forte estocada e uma provocação. De Santo Agostinho a Lutero, Kant, Bacon e Engels, homens da Igreja, santos e filósofos, ortodoxos e heterodoxos, desfilam nos textos do papa como protagonistas da nostalgia de Deus do ser humano.

Bento XVI desnuda a inconsistência das esperanças materialistas e faz uma crítica serena, mas profunda, à utopia marxista. Segundo o papa, Marx mostrou com exatidão como realizar a derrubada das estruturas. "Mas não nos disse como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém." Marx "esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. (...) O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior. (...) Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor".

O cerne do pensamento do papa, um vibrante e realista apelo à genuína esperança cristã, é a antítese do surrado discurso dos teólogos da libertação que, com teimosa monotonia, apostam no advento da utópica Jerusalém terrena. As injustiças, frequentemente escandalosas e brutais, devem ser enfrentadas e superadas, mas não há o paraíso neste mundo. E o papel da Igreja Católica, não obstante seu compromisso preferencial com os pobres e desvalidos, é essencialmente espiritual.

Bento XVI não contorna os temas difíceis ou politicamente corretos. Na contramão de certo ativismo eclesiástico, aponta a oração como "primeiro e essencial lugar" da esperança. "Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve." Sugestivamente, o papa evocou o falecido cardeal vietnamita Nguyen Van Thuan, que, após 13 anos na prisão comunista, 9 dos quais numa solitária, escreveu Orações na Esperança. "Numa situação de desespero aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-Lhe, tornou-se para ele uma força crescente de esperança, que, depois da sua libertação, lhe permitiu ser para os homens em todo o mundo uma testemunha daquela grande esperança que não declina, mesmo nas noites de solidão."

A mensagem de Bento XVI, direta e sem concessões, tem repercutido com força surpreendente. Seu desempenho, sobretudo no meio jovem, é uma charada que desafia o pretenso feeling de certos estudiosos do comportamento. Afinal, o estereótipo do papa conservador, obstinadamente apegado aos valores que estariam em rota de colisão com a modernidade, foi sendo contestado pela força dos fatos e pela eloquência dos números.

As Jornadas Mundiais da Juventude têm sido um bom exemplo do descompasso entre as profecias de certos vaticanólogos e a verdade factual. Crescentes multidões multicoloridas, usando tênis e mochilas, transformaram esse avô da cristandade num indiscutível fenômeno de massas.

Vem-me à lembrança, enquanto escrevo este artigo premido pela renúncia do papa, a cobertura que fiz para o jornal O Estado de S. Paulo, em outubro de 2003, do 25.º aniversário do pontificado de João Paulo II. Lembro-me, entre outros, de um depoimento sugestivo. Bruno Mastroianni era um jovem filósofo romano. Sobrinho de Marcello Mastroianni, o falecido ator de La Dolce Vita, do magnífico Fellini, nasceu depois da eleição de João Paulo II. Encontrei-o enturmado na Praça de São Pedro. "Nestes meus 24 anos", dizia-me então, "o papa sempre esteve presente. Lembro-me quando era criança daquele homem vestido de branco, com aspecto de estrangeiro, mas, ao mesmo tempo, tão familiar. Mais tarde, durante os anos da adolescência, fiquei rebelde. O papa, no entanto, estava sempre lá, um pouco mais velho, mas sempre forte. Dizia-nos, então, que o amor de Deus era a única resposta, o único caminho para um futuro melhor. Agora, formado e iniciando minha vida profissional, aquele homem vestido de branco, longe de parecer um velhinho frágil e doente, continua lá. É uma rocha firme e segura. Acredito que para todos os jovens como eu não exista um melhor mestre do amor que um papa tão enamorado de seu serviço ao mundo."

A incrível sintonia entre os papas e a juventude oculta inúmeros recados. Num mundo dominado pela cultura do ter, pelo expurgo do sofrimento e pela fuga da dor, Bento XVI caminhou aparentemente no contrafluxo.

"Não é o evitar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o homem, mas a capacidade de aceitar a tribulação e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido através da união com Cristo, que sofreu com infinito amor. (...) A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. Uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a compaixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e assumido é uma sociedade cruel e desumana", afirma Bento XVI.

Os jovens decodificam com mais facilidade os recados do papa. Eles o esperavam na Jornada Mundial da Juventude, encontro do pontífice com os jovens, em julho no Rio de Janeiro. O próximo papa, certamente, estará presente. E embora fisicamente ausente, Bento XVI o acompanhará com seu carinho e com a força da sua oração.

* Carlos Alberto Di Franco é doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra e diretor do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional de Ciências Sociais. E-mail: difranco@iics.com.br.

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